O cérebro eletrônico faz tudo?

O impacto da Inteligência Artificial generativa na cultura e na economia criativa

Beth Ponte
16 min readSep 13, 2023

Desde que publiquei o artigo ‘Elaborando projetos culturais com o Chat GPT’, no já distante abril de 2023, tenho participado de conversas e eventos e tenho incluído o tema da Inteligência Artificial (IA) generativa com destaque nos meus cursos em gestão cultural. Entre os profissionais da cultura e economia criativa me deparo constantemente com posições entre o deslumbramento e o medo.

O deslumbre vem do potencial das ferramentas em acelerar tarefas e processos. São redações, revisões de textos e vídeos editados com incrível rapidez, ilustrações geradas a partir de comandos escritos e etc. Porém, o temor também está sempre presente em perguntas como ‘será o fim da criatividade? Artistas serão substituídos por algoritmos? A IA pode ameaçar as ocupações e empregos criativos e artísticos?’

Nesse debate, uma máxima conhecida com ‘Lei de Amara’ é útil para pensar nos impactos da IA na economia criativa — e na sociedade de forma geral. Ela diz que “tendemos a superestimar o impacto de uma tecnologia no curto prazo e subestimá-la no longo prazo”. (Curiosidade: A frase é de 1969 e leva o nome do físico e futurista norte americano Roy Amara, mas é um resumo de uma ideia similar da matemática e escritora inglesa Ada Lovelace, responsável por escrever o primeiro algoritmo de computador da história ainda no século XIX.)

Será que estamos superestimando ou subestimando o impacto da IA na economia criativa? Qual o impacto que a automação pode ter nas funções criativas e como a IA pode transformar o trabalho de artistas a curto e médio prazo? Não existem respostas fáceis para perguntas complexas. E embora nesse momento ainda existam muito mais perguntas do que respostas, não é preciso futurologia para identificar os impactos da IA nas indústrias criativas. Nesse artigo resumo algumas reflexões e interessantes análises que tenho acompanhado sobre o tema.

Nem tão artificiais, nem tão inteligentes

A criatividade era considerada uma capacidade única dos seres humanos, pelo menos até a chegada das IAs generativas. Por isso, antes de discutir o impacto da IA nas indústrias criativas, vale a pena entender se elas são tão criativas (ou inteligentes) como parecem.

Cientistas e especialistas como Miguel Nicolelis (Duke University) e Dora Kaufman (PUC-SP) vem afirmando em diversas entrevistas que a inteligência artificial não é inteligente, tampouco artificial. Este pensamento, acompanhado por outros pensadores como Noam Chomsky, é de que as IAs não são artificiais porque são criadas e funcionam a partir dos insumos, do intelecto e dos comandos humanos. E nem são inteligentes porque não contam com ‘agência’, com consciência ou iniciativa própria. Seria mais correto, Nicolelis sugere, chamar as IAs de “modelos estatísticos”, com alto poder probabilístico e de processamento de dados.

E na mesma lógica, de acordo com esses especialistas, a criatividade ainda é um atributo humano. As IAs generativas de texto e imagem, como Chat GPT, MidJourney, Bard e outras, não são criativas pois não têm capacidade de gerar sozinhas nenhum produto artístico ou criativo.

A pesquisadora da Microsoft Research (e compositora) Kate Crawford, no seu livro “The Atlas of AI” (2021) também alerta como a percepção sobre o que é ‘inteligência’ pode ser enganosa. Em seu livro, Crawford faz uma brilhante comparação entre as IAs generativas e anedota histórica do “Clever Hans” (Hans Esperto), como ficou conhecido um cavalo de carruagem famoso no final do século 19 por sua aparente capacidade de responder a perguntas matemáticas e outras questões complexas. Seu dono, o alemão Willen Von Osten, levava Hans a vários eventos públicos, onde o cavalo mostrava suas ‘habilidades intelectuais’ a plateias deslumbradas. Em 1904, um psicólogo foi contratado para investigar o caso e descobriu que Hans não era realmente inteligente, mas sim que estava sendo guiado por sinais sutis de seu dono e do público. Ou seja, para decepção de muitos, Hans não tinha inteligência humana: era apenas um cavalo altamente treinado.

O cavalo Clever Hans com seu treinador, Wilhelm von Osten, 1904. Fonte: Britannica/ Mary Evans Picture Library/Alamy

Assim como o cavalo Hans, as IAs podem ser altamente treinadas, mas dependem dos humanos para criar e para fornecerem respostas corretas a questões humanas. A IA não tem ‘voz’, consciência moral e intencionalidade (pelo menos ainda). Ou como já disse Gilberto Gil, na canção de 1969: “o cérebro eletrônico faz tudo/ faz quase tudo/ mas ele é mudo”.

Em seu estágio atual, a IA depende da inteligência humana ao invés de substituí-la. Mas isso nem de longe significa que a nova onda de IA generativa não traga muitos riscos e muitas oportunidades para o setor cultural.

Toda moeda tem dois lados: os benefícios e possibilidades da IA

É indiscutível que as IAs já estão transformando nosso mundo. Há algum tempo já estamos sentindo o impacto que os algoritmos exercem sobre o trabalho e o lazer. A IA está incorporada nos modelos de negócios de plataformas como Netflix, Waze, Spotify, Uber, 99, Airbnb, Amazon e iFood. Está também presente em games, apps de namoro e em assistentes virtuais, como Alexa ou Siri. E diversas soluções baseadas em IA já estão disponíveis e estão sendo utilizadas para diversas aplicações criativas.

Em setembro de 2022, o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) lançou a publicação “Inteligência Artificial e cultura: perspectivas para a diversidade cultural na era digital”, com uma pesquisa qualitativa pioneira e muito interessante sobre o tema. A pesquisa mostra exemplos e depoimentos de como artistas, produtores e organizações culturais estão adotando softwares de IA para fins operacionais, para criações artísticas, iniciativas de mediação cultural, mapeamento de público e gestão de acervos digitais. Entre os benefícios citados pelos agentes entrevistados estão a otimização de processos; democratização da produção; experimentação e inovação, a interatividade e personalização da experiência cultural, dentre outros.

A publicação cita alguns exemplos de aplicação da IA em funções criativas, surgidos antes mesmo do recente boom das IAs generativas. Criado em 2019, o Moises, um aplicativo de edição de áudio desenvolvido pelo desenvolvedor brasileiro Geraldo Ramos, já é utilizado por milhões de usuários em todo o mundo em processos de produção musical e mixagem. Desde 2021, o Adobe Premiere oferece ferramentas de IA para acelerar e melhorar a edição, tratamento e legendagem de vídeos. Plataformas como Canva e o Microsoft Designer tornaram a diagramação de peças gráficas mais acessíveis há alguns anos — e agora também incorporam funções de comando em texto.

Embora esses softwares — como quase todas as IAs generativas recentes — possam ser usados por não-profissionais, o que se percebe no estágio atual é que ao invés de extinguir as profissões de produtores musicais, editores de vídeo ou designers, as ferramentas têm sido usadas justamente por eles e ajudado a aumentar a produtividade e qualidade do seu trabalho. Mas se a otimização do tempo é um dos maiores benefícios para artistas e criativos com a adoção das ferramentas de IA, suas consequências também merecem consideração.

Em uma entrevista para o IdeaCast, podcast da Harvard Business Review, o artista digital Don Allen Stevenson III (que já trabalhou no estúdio de animação Dreamworks e foi consultor da OpenAI, criadora do Chat GPT e DALL-E), levanta um ponto muito relevante: os impactos da IA na percepção de valor e na precificação de serviços criativos. Em seu depoimento Stevenson oferece também uma noção bem clara sobre o impacto das IAs para artistas e criativos que lidam com produtos integralmente digitais:

“O que eu levaria uma semana para iterar e pensar antes de ter um esboço que pudesse mostrar a um cliente, agora (usando o software Wonder Dynamics) leva apenas alguns segundos. E isso de repente me atingiu com força, porque eu realmente tive que repensar o que significava para mim existir como artista. Isso realmente mudará o que significa fazer arte profissionalmente e vai mudar as expectativas tanto dos artistas quanto dos clientes. (…) A principal maneira de ser diferente é que agora tenho que mostrar como cheguei ao resultado para meus clientes, para que eles possam realmente ver o esforço humano, as impressões digitais humanas, o toque humano que foi colocado em qualquer coisa.” Don Allen Stevenson III, IdeaCast, 11 de maio de 2023

A questão sobre valor e precificação dos produtos artísticos merece atenção, pois normalmente o ‘preço’ é uma combinação de elementos objetivos (quantidade de horas necessárias para executar determinada tarefa) e subjetivos (visão artística, habilidades e experiência acumulada pelo/a artista, etc.).

Se com a ajuda da IA alguém leva bem menos tempo para, por exemplo, animar um vídeo ou fazer uma ilustração, sua capacidade de produção muda. Como consequência, a lógica de precificação também muda — e não só para o profissional criativo: para o mercado também.

De acordo com Stevenson, a boa notícia para os profissionais criativos é que justamente sua habilidade de conectar domínios diferentes e fazê-los interagir de formas inovadoras os coloca em uma posição vantajosa frente à ascensão da IA generativa. No entanto, aqueles que são especialistas em uma única área estão mais vulneráveis aos avanços da IA. Stevenson sugere que, para não ficarem para trás, artistas e criativos devem experimentar ativamente as novas ferramentas de IA disponíveis. Ele alerta que aqueles que evitam a tecnologia, a menos que atuem em um nicho já estabelecido ou que tenham um público muito específico, podem não encontrar espaço no mercado futuro.

A história que Hollywood nos conta sobre o presente e futuro das IAs

Manifestação dos Sindicados de Roteiristas dos Estados Unidos (21.06.23) Fonte: Wikipedia

O futuro da IA já vem sendo escrito há algum tempo. Em dezembro de 2018, o Comitê Intergovernamental da UNESCO para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais divulgou o informe “Princípios éticos para o desenvolvimento da inteligência artificial baseada na diversidade de expressões culturais”. O documento alertava para os riscos do desenvolvimento da IA para a diversidade cultural e para a empregabilidade e remuneração de artistas, com foco nos algoritmos de recomendação — que são também uma forma de IA e que impulsionam as plataformas de streaming.

Cinco anos depois, vemos alguns desdobramentos bem concretos desses alertas. Iniciada em maio de 2023, a greve de roteiristas e atores de Hollywood tornou-se uma das maiores paralisações da indústria do entretenimento e trouxe à tona diversas das preocupações acerca da IA. A transformação na cadeia de produção e distribuição do audiovisual está no centro da greve, que envolve disputas sobre atualização de ganhos, regulamentações das plataformas de streaming e, além disso, limites do uso de ferramentas de IA generativa.

Em relação às IAs generativas, o Sindicato dos Roteiristas solicita que contratos estipulem que todo roteirista creditado seja um ser humano, inibindo o uso de IA em certas atividades criativas. Os atores, por sua vez, preocupam-se com a utilização de suas imagens e vozes infinitamente replicáveis com a ajuda de ferramentas de IA.

A greve em Hollywood serve como um alerta para outras indústrias criativas, mostrando que é imperativo discutir os impactos da IA de forma responsável e inclusiva no setor. E que isso deve ser feito agora.

Em 2022, a UNESCO publicou uma atualização do documento de recomendações éticas (com versão em Português). Nesse novo documento, as preocupações e recomendações da UNESCO estão mais focadas nas IAs generativas. Além de recomendar que os Estados-membros promovam educação em IA e treinamento digital para artistas e profissionais criativos, a UNESCO indica a necessidade de conscientização e a avaliação de ferramentas de IA entre indústrias culturais locais e pequenas e médias empresas que trabalham no campo da cultura, para evitar o risco de concentração no mercado cultural.

Em relação à diversidade cultura e linguística, a UNESCO encoraja os países a incorporarem sistemas de IA, onde for apropriado, para potencializar a “preservação, promoção, gestão e acessibilidade do patrimônio cultural tangível, documental e intangível, incluindo línguas ameaçadas bem como línguas e conhecimentos indígenas”.

O quanto a automação do trabalho pode afetar os empregos criativos?

No relatório “The Future of Jobs 2020”, lançado em outubro de 2020, o Fórum Econômico Mundial estimou que, “até 2025, 85 milhões de empregos poderão ser substituídos por uma mudança na divisão do trabalho entre humanos e máquinas, enquanto poderão surgir 97 milhões de novos papéis mais adaptados à nova divisão do trabalho entre humanos, máquinas e algoritmos.”

Soa como um exemplo da Lei de Amara, superestimando efeitos a curto prazo, mas dada a velocidade do desenvolvimento das IAs generativas, há uma probabilidade de que a previsão esteja certa. E alguns dos empregos, tanto os perdidos quanto os criados, pertencerão à indústria criativa. Alguns setores já estão sentindo inclusive o impacto com mais força, dentre eles a publicidade, a arquitetura e o desenvolvimento de softwares (que sim, também fazem parte da indústria criativa).

Importante destacar que automatização de tarefas não é a mesma coisa que substituição de humanos por máquinas: muitos empregos ou funções continuarão existindo, mas precisarão de capacitação ou serão remodelados para incorporar as IAs.

O que vai mudar profundamente nos próximos anos é, nas palavras da consultoria McKinsey Global Institute, “a anatomia do trabalho, aumentando as capacidades dos trabalhadores individuais ao automatizar algumas das suas atividades individuais”. Eles preveem que a IA generativa atual e outras tecnologias têm o potencial de automatizar atividades de trabalho que hoje absorvem 60 a 70% do tempo de trabalhadores de diversas indústrias.

O que eles chamam de “potencial de automação técnica” também foi destaque no Growth Summit 2023 do Fórum Econômico Mundial, realizado em Genebra no último mês de maio. No artigo How might generative AI change creative jobs? (Como a IA generativa pode mudar os empregos criativos?), o Fórum traz dados relevantes extraídos de uma pesquisa do grupo financeiro Goldman Sachs de março de 2023 e que contempla a economia criativa e as artes.

Analisando o cenário norte-americano, a pesquisa indica que a IA generativa tem o potencial de automatizar 26% das tarefas de trabalho nos setores de artes, design, entretenimento, mídia e esportes. Esse percentual não é muito distante do impacto de automação previsto em todas as indústrias (25%). Em outras áreas profissionais (direito, serviços administrativos e arquitetura) os impactos previstos chegam à casa dos 40% ou mais.

Fonte: Parcela de empregos nas indústrias sujeitos à automação pela IA nos EUA. Goldman Sachs (The Potentially Large Effects of Artificial Intelligence on Economic Growth) Março de 2023. Destaque nosso.

O estudo reforça a previsão de que a IA terá um impacto significativo no mercado de trabalho, mas destaca que o impacto será mais complementar do que substitutivo.

O relatório prevê que apenas 7% dos empregos atuais nos Estados Unidos seriam inteiramente substituídos pela IA. Enquanto isso, uma grande maioria, cerca de 63%, seria complementada pela tecnologia, e 30% dos empregos permaneceriam praticamente inalterados. De acordo com o gráfico abaixo, os setores de ‘artes, design, entretenimento, esportes e mídia’ se encaixam na 2a categoria, com maior potencial de complementaridade do que de substituição de empregos.

Fonte: Goldman Sachs (The Potentially Large Effects of Artificial Intelligence on Economic Growth) Março de 2023. Destaque nosso.

O que é um trabalho criativo?

E o que fará com que alguns empregos sejam menos ameaçados que outros? De acordo com o relatório (Agency AI-Powered Workforce Forecast, 2030 (US), da Forrester) a criatividade é o fator mais significativo que reduz o potencial de automação de um trabalho. O documento sugere como caminho a adoção da “criatividade inteligente”, uma abordagem que combina resolução criativa de problemas com ajuda das tecnologias de IA. Profissionais que utilizarem as ferramentas de IA para potencializar o trabalho criativo que já desenvolvem, terão mais chances de prosperar futuramente.

“(…) fazer um trabalho que requer pouco raciocínio e criatividade dá a você, como trabalhador humano, um curto caminho antes que a IA potencialmente elimine sua função. Mas as funções são apenas conjuntos de tarefas, o que significa que precisamos considerar quais tarefas a IA executa melhor e quais tarefas as pessoas realizam melhor.” (Joseph Romsey, SHRM, 17 de julho de 2023)

Nesse debate, é interessante pensar sobre o que efetivamente constitui um trabalho criativo e humano, e portanto menos sujeito à automação e possível substituição pelas IAs.

O indicador de Intensidade Criativa, do Observatório Itaú Cultural, é útil para ajudar a entender as perspectivas para o setor no Brasil. O indicador é uma medida que quantifica a contribuição da criatividade para a geração de valor econômico. Os trabalhos criativos são definidos com base em cinco critérios: 1) Novos processos; 2) Resistência à mecanização; 3) Não repetição e não uniformização de função; 4) Contribuição criativa à cadeia de valor: 5) Interpretação, não mera transformação. Setores com menor intensidade criativa têm mais chances de serem mais afetados pela automação provocada pelo desenvolvimento das IAs generativas.

O indicador nos revela que nem todo trabalho no setor cultural é necessariamente um trabalho criativo. Dados de 2023.1 mostram que os setores de artes e espetáculos têm, por exemplo, uma intensidade criativa de 71,93%, enquanto a produção cinematográfica e de TV registra 70,07%.

Fonte: Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. Intensidade criativa, recorte do gráfico (2023.1). https://www.itaucultural.org.br/observatorio/paineldedados/pesquisa/intensidade-criativa

Esses dados indicam, em consonância com a previsão norte-americana, que mesmo nestes setores mais de ¼ das atividades realizadas correm o risco de serem automatizadas no futuro com apoio da IA. O que isso vai representar em termos de empregos e remuneração de artistas, criativos e outros profissionais que atuam no setor vai depender muito da velocidade das mudanças em diferentes setores da economia criativa.

Não há mágica: é necessário construir futuros possíveis para a arte e para os artistas

Além da ‘Lei de Amara’, outra ‘lei’ tem sido bastante evocada para falar sobre a relação da humanidade com as IAs generativas. Trata-se da última das três Leis de Clarke, como ficaram conhecidos os enunciados escritos pelo físico inglês Arthur C. Clarke acerca da relação da humanidade com a tecnologia. As ‘leis’ foram publicadas no livro “Hazards of Prophecy: The Failure of Imagination” (Perigos da Profecia: A Falha da Imaginação), de 1962 e a terceira diz que:

“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.”
Any sufficiently advanced technology is indistinguishable from magic.

Em julho de 2023, o Chat GPT registrou pela 1ª vez uma queda no número de usuários — de quase 10%. Existem diferentes explicações para a queda, que vão desde a insatisfação dos usuários com as respostas ‘inventadas’ e incorretas; o lançamento de concorrentes, como o Bard (Google) e Bing Chat (Microsoft), além da proliferação de centenas de outros softwares com funcionalidades semelhantes. Apesar desse dado, ainda é cedo para afirmar que o hype com a ‘magia’ das IAs passou ou está perto do fim. Mas ele é um indicativo de que agora já se entende um pouco mais sobre as limitações (e riscos) dessas ferramentas.

Passado o deslumbre e o assombro que nos acompanham sempre que vemos um número de mágica, temos que enxergar as IAs como o que elas realmente são: bem treinadas e engenhosas tecnologias que, como quaisquer outras, podem ser utilizadas para o progresso ou para a destruição. Por isso mesmo, precisam de regulação, e sobretudo, educação para seu uso.

É urgente que os projetos de regulação das IAs em curso contemplem as questões específicas da economia criativa e incluam questões da propriedade intelectual e direitos autorais, sobretudo de artistas vivos e cujas criações — bastante humanas — foram justamente o material usado para treinar as máquinas. E da mesma forma, conforme recomendou a UNESCO ainda em 2018, “as leis relacionadas a direitos de autor, radiodifusão, telecomunicações e radiocomunicações devem ser revisadas e ter em conta as mudanças tecnológicas que perturbaram os ecossistemas culturais e ajudar a restaurar o seu equilíbrio”. Além disso, estratégias para preservação de empregos, com capacitação e apoio à transição profissional, devem estar na pauta das políticas públicas e setoriais da cultura.

É irônico lembrar que Clarke, além de físico, também foi um escritor de diversas novelas de ficção científica. Dentre elas está The Sentinel, de 1948, que 20 anos depois inspirou o filme “2001: Uma odisseia no espaço”, de Stanley Kubrick. Como será que ambos se posicionariam frente à greve de Hollywood? Talvez o futuro não seja tão distópico quanto imaginado por eles, mas será desafiador, já que com a IA generativa é o próprio valor social dos artistas e da qualidade dos produtos da criatividade humana que pode estar em jogo.

Neste caso, a analogia entre IA e mágica pode ser especialmente útil ao nos lembrar que uma das técnicas mais básicas do ilusionismo é desviar a atenção do espectador. Talvez, o caminho para reafirmar (e reimaginar) o valor da arte e da cultura seja justamente olhar para onde a revolução da IA não aponta. Ou nas palavras de Marina Azcárate, colunista do observatório The Next Cartel, deixar de focar no que uma IA geradora de arte pode fazer, mas sim no que ela NÃO pode:

“(..) em vez de nos fixarmos no medo de que a arte gerada pela IA torne obsoletos os artistas humanos, deveríamos concentrar-nos no que realmente torna a arte valiosa para a sociedade.”

Para isso, não há truque de mágica, mas sim muito trabalho (e criatividade) pela frente.

Recomendações e dicas:

  • Ainda está tentando entender o que é a IA e como ela funciona? Você não está sozinho/a. Para os primeiros passos, recomendo a reportagem especial “O que é inteligência artificial? Um guia simples para entender a tecnologia”, da equipe de jornalismo visual da BBC
  • Se quiser saber mais sobre como o streaming mudou a forma como roteiristas e produtores audiovisuais norte-americanos trabalham e precarizou as carreiras no setor, recomendo esse vídeo da Vox. (Conteúdo em inglês, com legenda disponível em espanhol)

Beth Ponte é gestora cultural, pesquisadora e consultora pela Ponte Cultura & Desenvolvimento e pelo Deck — Inteligência digital para a cultura. É pesquisadora associada do Observatório de Economia Criativa da Bahia (OBEC-BA) e vice-presidente do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Organizações Sociais da Cultura (ABRAOSC). Foi German Chancellor Fellow (2018/2019) da Fundação Alexander von Humboldt, na Alemanha, onde desenvolveu o projeto “Quality for Culture” (Qualidade para a cultura). Desde 2013, é professora convidada de cursos de pós-graduação em gestão cultural no Brasil e exterior.

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Gestão cultural com propósito // Arts management with purpose www.qualityforculture.org (PT/EN)

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