Equidade de gênero no setor cultural
A cultura ainda é um campo de batalha quando o tema é equidade de gênero.

O mês internacional das mulheres está perto de terminar, mas nossa luta não. Como profissional da cultura, sei que as artes e as indústrias criativas são campos de trabalho fascinantes. Mas isso não os torna exceção em relação à desigualdade de gênero presente em outros setores e indústrias. E precisamos falar sobre isso. O setor cultural ainda é um campo de batalha quando o tema é equidade de gênero.
Temos cada vez mais acesso a dados que comprovam que as mulheres atuantes nos setores cultural e criativo também sofrem dos mesmos males que afetam profissionais do sexo feminino em outros setores da economia. Isso se reflete na participação limitada posições de tomada de decisão (o ‘teto de vidro’), em menos oportunidades de treinamento contínuo, capacitação e networking; menos acesso a recursos e em grandes diferenças salariais (UNESCO, 2014).
No Brasil a desigualdade salarial entre homens e mulheres é maior no setor cultural do que no total de atividades. As mulheres no campo da cultura ganham em média apenas 67,8% dos salários dos homens , contra 82,8% na totalidade de outros setores. (IBGE, SIIC 2018)
Além disso, algumas características do setor cultural tornam a desigualdade de gênero ainda mais multifacetada. A informalidade e sazonalidade de segmentos da cultura, por exemplo, pesam mais sobre mulheres, geralmente impactadas pela divisão desigual de tarefas domésticas e familiares.
Mulheres ainda são afetadas por estereótipos de gênero sobre o papel de liderança ou mesmo certas profissões, resultando na segregação em certas atividades (‘paredes de vidro’). Estereótipos de gênero em relação à liderança ajudam a explicar, por exemplo, porque mesmo depois de tantos avanços temos ainda tão poucas diretoras de cinema, diretoras de criação ou condutoras de orquestra. Mas estereótipos não afetam apenas posições de liderança. Você já percebeu que o naipe de metais das orquestras (trompetes, trombones, trompas e tubas) é quase sempre exclusivamente masculino? Não é por acaso.
Em 2014 apenas 13,7% dos filmes produzidos no Brasil foram dirigidos por mulheres e menos de 1% por mulheres negras (Instituto GEMAA, 2014). Em 2018, esse percentual atingiu seu recorde histórico: 20%. Mulheres respondem no entanto por 41% das posições de produção executiva. (ANCINE, 2018).
Mas isso tudo ainda não é o pior: nos últimos anos, o movimento #MeToo e outras iniciativas similares em todo o mundo mostraram como o assédio sexual, moral e a violência psicológica, que vitimam mulheres com mais frequência, ainda são parte da cultura organizacional de setores da cultura e do entretenimento. E não podemos esquecer que todos estes desafios são ainda mais agudos e frequentes para as mulheres negras em qualquer posição na cadeia criativa e em qualquer segmento do setor cultural.
“O pouco conhecimento sobre a existência de mulheres negras como criadoras de arte confirma a abstenção dos meios responsáveis pela pesquisa e difusão de conhecimento, seja esse silêncio intencional e discriminatório ou apenas indiferente.”
A representação da mulher negra na arte brasileira — Gabriela Valer Picancio, Rafael José dos Santos e Silvana Boone
Muitas pessoas, organismos e coletivos estão convencidos de que isso tem que mudar. Para encerrar esse mês de março, selecionei algumas referências de organizações e recursos (em inglês e português) para todas e todos que acreditam que a cultura somente ajudará a construir um futuro melhor quando se tornar um campo de trabalho mais justo e igualitário para todas as mulheres.
Gênero, economia criativa e políticas culturais

UNESCO ‘Gender Equality, Heritage and Creativity’ (2014)
Elaborado pelo Setor de Cultura da UNESCO, esse relatório reuniu, pela primeira vez, pesquisas, políticas, estudos de caso e estatísticas existentes sobre igualdade de gênero e empoderamento das mulheres na cultura. Inclui recomendações para governos, tomadores de decisão e a comunidade internacional, nas áreas de criatividade e patrimônio. Disponível em Inglês, Francês e Espanhol.
Re|pensar as políticas culturais: criatividade para o desenvolvimento (2018)
O Relatório global da UNESCO acompanha os avanços na implementação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005, atualmente ratificada por 146 Partes. O relatório conta com uma versão em Português e traz dados relevantes sobre a desigualdade de gênero na cultura, ilustrados de forma bastante clara.

“A ideia de que a criatividade é masculina leva à marginalização das mulheres de papéis criativos de prestígio nas indústrias culturais e à sua concentração em empregos que envolvem qualidades que são estereotipadamente atribuídas a elas.”
Sandrine Pujar
Combatendo estereótipos: pesquisa sobre a desigualdade de gênero no setor cultural (2016)
Sandrine Pujar, autora da pesquisa “Combating stereotypes: research on gender inequality in the culture sector”, promovida pela Culture Action Europe, analisa o problema da discriminação contra as mulheres no setor cultural e propõe formas de reduzir as desigualdades. Ela sugere melhorias em quatro níveis de trabalho cultural: criação, produção, distribuição e participação.

Gender in Culture/ European Institute for Gender Equality (2017)
Esta publicação analisa as lacunas de gênero que impedem a participação igualitária das mulheres no campo cultural e compartilha casos de objetivos da política de igualdade de gênero na UE e a nível internacional, bem como recursos úteis e exemplos práticos de integração de gênero na política cultural.
Artes Cênicas

Respeito em Cena
Idealizada pela documentarista, diretora artística e ativista brasileira Luciana Sérvulo da Cunha, a ONG “RESPEITO EM CENA” coloca sob holofotes a violência psicológica no meio artístico. O movimento conta com um time de especialistas e de artistas de 11 países da América Latina na primeira Campanha Latinoamericana de Combate à Violência Psicológica no meio artístico.

#WakingTheFeminists: luta por igualdade no teatro Irlandês
#WakingTheFeminists começou como uma campanha pela igualdade para as mulheres no teatro irlandês no final de 2015. Em 2016, elas encomendaram uma pesquisa inovadora, Gender Counts (Gênero Conta), sobre o equilíbrio de gênero e coletaram dados sobre 1.155 produções ao longo de um período de dez anos (2006–2015). Entre muitas descobertas, a pesquisa mostrou que os quatro teatros irlandeses que recebiam mais recursos públicos eram justamente os que tinham a menor representação feminina em suas produções.
Uma das principais recomendações do relatório Gender Counts foi encorajar as organizações teatrais registrar dados sobre distribuição de gênero em suas produções. Em 2020, os pesquisadores publicaram um relatório provisório sobre o progresso feito nos 5 anos desde #WakingTheFeminists. Boas notícias: a porcentagem de trabalhos escritos / criados por mulheres aumentou em todas as organizações incluídas na pesquisa original, mas o caminho ainda é longo até a paridade.

Audiovisual
Mulheres no audiovisual
A ideia principal da Plataforma Mulheres Audiovisual , criada em 2016, é dar visibilidade às produções contemporâneas de mulheres e, também, ser uma ferramenta de construção de novas narrativas sobre o papel da mulher no cinema e na produção da cultura cinematográfica e do audiovisual no Brasil.

Women and Hollywood
A plataforma Mulheres e Hollywood educa, defende e promove adiversidade e inclusão de gênero em Hollywood e na indústria cinematográfica global. O site foi fundado em 2007 por Melissa Silverstein.

The Center for the Study of Women in Television and Film
O Centro para o Estudo das Mulheres na Televisão e no Cinema da San Diego State University é referência de estudos sobre mulheres no audiovisual. Os estudos gerados pelo Centro fornecem a base para uma discussão realista e significativa sobre a representação feminina nas telas e nos bastidores da indústria audiovisual norte-americana.
Black Women Film!
Em 2016, o Programa Anual Black Women Film! Leadership foi fundado por Ella Cooper, com apoio do Conselho do Canadá para as Artes e parceiros. Desde então, a Black Women Film tornou-se um coletivo e catalisador dedicado ao desenvolvimento profissional, além de uma rede e uma plataforma para mulheres negras cineastas e da mídia. Assista a este vídeo (em Inglês) sobre seu premiado modelo de acampamento para meninas adolescentes negras aspirantes a cineatas, orientadas e apoiadas por ex-alunos da Black Women Film e profissionais da indústria para criar seus primeiros curtas-metragens.
Array Alliance

Fundada pela cineasta, distribuidora e ativista Ava Duvernay, a Array Alliance amplifica histórias de comunidades sub-representadas, fornecendo oportunidades na industria do cinema e televisão às mulheres negras e outras pessoas de minorias étnicas. Eles acreditam que todas as pessoas e comunidades merecem ver suas experiências refletidas no cinema com autenticidade e para isso desenvolvem diversos programas — incluindo mentoria, educação e doação de bolsas — voltados principalmente para mulheres.
Música

Mulheres na Indústria da Música no Brasil: Obstáculos, Oportunidades e Perspectivas
O DATA SIM realizou ao longo de 2019 a primeira pesquisa brasileira sobre a participação feminina no mercado de trabalho da música: “Mulheres na Indústria da Música no Brasil: Obstáculos, Oportunidades e Perspectivas”. A pesquisa foi lançada em março de 2019 e compatibilizada com a pesquisa “Women In The U.S. Music Industry: Obstacles And Opportunities” do Berklee College of Music e da ONG internacional Women in Music (WIM), que investigou a presença feminina no mercado norte-americano.
Mulheres e o meio orquestral
A Alemanha é conhecida como o país das orquestras sinfônicas, um setor marcado pela intensa desigualdade de gênero. Um estudo escrito por Melissa Panlasigui e conduzido pela Música Femina em Munique examinou a lacuna de gênero em 120 orquestras profissionais do país na temporada 2019/2020.
Em cargos de liderança como direção geral, direção musical ou direção artística, as mulheres representavam apenas 8% dos cargos — um número muito abaixo do nível nacional geral de 27% de mulheres em cargos de liderança na Alemanha. Nas séries por assinatura, menos de 2% da programação apresentava obras de compositoras.
O debate sobre equidade de gênero nas orquestras norte-americanas também ganha destaque. Jennifer Melick escreveu um excelente artigo para a revista League of American Orchestras e entrevistou várias maestras sobre igualdade de gênero em orquestras norte-americanas. E em março de 2021 Aubrey Bergauer divulgou uma análise mostrando que mulheres tendem a liderar orquestras norte-americanas com os menores orçamentos.
No Brasil, em 2019 foi criada a Orquestra Sinfônica de Mulheres do Rio de Janeiro, idealizada pela trompetista Luciene Portella. Como em outros setores, as mulheres musicistas fizeram grandes avanços nas últimas décadas nas orquestras. No entanto, como mostra o estudo alemão, o avanço no número de mulheres em cargos de liderança, especialmente como regentes e diretoras musicais, ainda é lento.
Museus e artes visuais

Gender Equity in Museums Movement
Desde 2014, a Associação de Diretores de Museus dos EUA publica os Relatórios Gender Gap, que mostram que mulheres ocupam menos de metade das diretorias de museus nos EUA e que o salário médio das diretoras é inferior ao dos diretores. Esses dados incentivaram a consolidação do movimento “Equidade de Gênero em Museus” (GEMM), uma coalizão de profissionais e organizações norte-americanas em defesa da transparência sobre a equidade de gênero em instituições museais. Dentre vários recursos, eles criaram uma coleção “5 coisas que você precisa saber” com informações úteis sobre tópicos como assédio sexual no local de trabalho, negociação salarial, networking, lidar com feedback negativo, etc.
Guerrilla Girls
Impossível pensar em ativismo de gênero no mundo das artes e não pensar no Guerrilla Girls, um grupo de artistas feministas anônimas cujo objetivo é combater o sexismo e o machismo no mundo da arte. O grupo foi formado em Nova York em 1985, tendo a missão de trazer a público a desigualdade de gênero e raça dentro da comunidade artística.

Mulheres na cultura — Google Arts & Culture

Se inspire com este projeto especial do Google Arts & Culture reunindo obras e acervos de mais de 50 museus em todo o mundo. A exposição apresenta de artistas inovadoras e cientistas pioneiras a mulheres que fizeram campanha pelo sufrágio universal e pela igualdade social. O Geledés — Instituto da Mulher Negra também está presente na plataforma com uma grande riqueza de acervo, incluindo uma exposição especial sobre Léa Garcia, atriz e ativista social.
Black Women in Visual Art
Black Women in Visual Art (BWVA) se define como uma organização norte-americana para mulheres artistas visuais e profissionais da cultura da Diáspora Africana. A BWVA tem como objetivo fomentar redes, compartilhar recursos e desenvolver programas com o objetivo de aumentar a visibilidade das mulheres e foi criada por Lauren Jackson Harris e Daricia Mia DeMar, arts managers from Atlanta (US).
Muna — Mulheres Negras nas Artes
A MUNA é uma organização que tem como objetivo principal o fortalecimento da rede de Mulheres Negras nas Artes, com o desejo de incentivar e estimular o protagonismo destas artistas dentro do cenário da arte contemporânea.

E para finalizar essa seção, recomendamos a palestra “Artistas negras brasileiras: desafios contemporâneos”, para o MASP em agosto de 2019, na qual a artista e professora Rosa Paulino traz questões sobre a formação das jovens artistas negras, sobre o panorama internacional de revisão de histórias hegemônicas e sua influência na produção feminina afrodescendente no Brasil.
Indústrias criativas
3% Movement

Kat Gordon trabalhou por 20 anos como redatora e diretora de criação em agências de publicidade e fundou o Movimento 3% depois de saber que apenas 3% de todos os diretores de criação dos EUA eram mulheres. Por meio de uma combinação de conteúdo, network e programas de desenvolvimento profissional, o Movimento ajudou a aumentar o número de diretoras de criação para 29%, auxiliando agências de publicidade a defender o talento criativo e a liderança femininas. Em 2017, eles publicaram o relatório Where we stand (Onde estamos), destacando as lacunas de gênero no setor.
65/10: comunicação, publicidade e o público feminino

Fundada por Thais Fabris e Maria Guimarães, a 65/10 é uma consultoria criativa brasileira especializada em mulheres. Em parceria com o Facebook, desenvolveram o Ads4Equality: um projeto que une dados e diversidade ajudar os anunciantes a agirem para uma publicidade mais representativa. Além disso desenvolvem pesquisas sobre o papel e a imagem das mulheres na sociedade, como Mães Reais: um Retrato da Maternidade no Brasil e projetos como o Mulheres (In)visíveis, a primeira coleção de banco de imagens que mostram a cara da mulher brasileira que a gente vê nas ruas.
L’association HF Île-de-France

A associação HF Île-de-France nasceu em novembro de 2009, em Paris, por iniciativa de mulheres e homens que trabalham na área do entretenimento, da rádio e do cinema. Faz parte da federação inter-regional do Movimento HF, formada por 9 coletivos com mais de 1000 membros. A associação contribui para a orientação de políticas públicas e ações artísticas e culturais para uma real igualdade entre mulheres e homens: na distribuição de cargos de responsabilidade e meios de produção, na composição de júris e órgãos de decisão, na programação, etc.
Reconstruir, Reconciliar, Reimaginar: demandas para estimular a liderança de mulheres negras no setor de educação para as artes
O setor de educação artística é bastante robusto e organizado nos EUA e também reproduz os desequilibrios e subrepresentações de outros setores culturais. Por isso, a partir de 2019, a New York City Arts in Education Roundtable estimulou a criação de uma coalizão de trabalhadores culturais negros para apoiar e defender arte educadoras mulheres negras, gestoras e executivas nesta área.
Eles criaram uma Lista de demandas para colocar a liderança de mulheres negras no centro da educação artística. É um exemplo notável de chamado à ação: eles exigem que as organizações culturais repensem sua infraestrutura, missão e valores fundamentais, e o grau em que eles priorizam e apoiam a liderança das mulheres negras. Eles defendem investimentos relacionados ao recrutamento, remuneração justa, cuidados com a saúde mental, mentoria, avanço na carreira, desenvolvimento profissional e igualdade de oportunidades para mulheres negras.
Quer recomendar algum projeto ou publicação? Entre em contato :)
+++
Beth Ponte é gestora cultural, pesquisadora e consultora. É autora do projeto Qualidade para a Cultura, membro do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Organizações Sociais da Cultura (ABRAOSC) e do Observatório de Economia Criativa da Bahia (OBEC-BA). De 2010 a 2018, foi Diretora Institucional do Programa NEOJIBA (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia) e, até 2019, foi German Chancellor Fellow da Fundação Alexander von Humboldt, na Alemanha.
www.qualityforculture.org/pt >> info@qualityforculture.org