Como cultivar a esperança em tempos sombrios, por Rebecca Solnit
Podemos estar vivendo tempos de mudança sem precedentes, mas na incerteza reside o poder de influenciar o futuro. Agora não é hora de se desesperar, mas de agir.

Introdução, por Beth Ponte
“O passado iluminará o futuro” ou “Porque você deveria ler esse texto”:
Provalmente assim como você, sou uma pessoa que acredita na democraria e na ciência e estou atravessando a pandemia de COVID-19 no Brasil. Muitas vezes me questiono: porque e como podemos cultivar a esperança em momentos tão sombrios? Neste início de 2021, uma das melhores leituras fiz foi o livro “Hope in the Dark” (em tradução livre “Esperança na escuridão”, sem edição no Brasil), da escritora norte-americana Rebecca Solnit, escrito no já distante ano de 2003 e relançado em 2016.
Já conhecia Rebecca Solnit por outros dois livros lançados no Brasil (Os homens explicam tudo para mim, de 2014, e A mãe de todas as perguntas, de 2017). Embora tardiamente, fiquei feliz em descobrir que Rebecca Solnit não é apenas a autora feminista que muitos conhecem: é uma ativista da esperança e acredita que todos temos razões para sê-lo também.

Desde que terminei Hope in the Dark tenho falado efusivamente sobre ele com amigos e colegas. O livro me inspirou muito e é uma pena que não ainda tenha sido traduzido para o Português e lançado no Brasil. Por isso resolvi traduzir esse artigo escrito pela própria Solnit e publicado no The Guardian à época do relançamento do livro, em julho de 2016, com título “‘Hope is an embrace of the unknown’: Rebecca Solnit on living in dark times”. O texto resume bem algumas das principais ideias do livro e suas premissas ecoam com ainda mais força nesta realidade pandêmica e de ameaça da democracia. (Os grifos no texto são meus.)
Para exemplificar as “forças da mudança em ação”, escolhi ilustrar essa tradução informal como fotos de acontecimentos e transformações sociais recentes. Todas aconteceram depois que Solnit escreveu o livro — várias delas nos últimos 5 anos desde sua reedição. Neste momento tão sombrio que atravessamos nós precisamos, mais do que nunca e sobretudo no Brasil, olhar para o passado, acreditar na esperança e agir pela mudança. “Você rema para frente olhando para trás, e contar essa história é parte de ajudar as pessoas a navegar em direção ao futuro.”
Boa leitura!
Seus oponentes adorariam que você acreditasse que não há esperança, que você não tem poder, que não há razão para agir, que você não pode vencer. A esperança é um presente ao qual você não precisa renunciar, um poder que você não precisa jogar fora.
Embora a esperança possa ser um ato de desafio, o desafio por si só não é razão suficiente para ter esperança. Mas há boas razões.
Em 2003 e no início de 2004, escrevi um livro para defender a esperança. “Hope in the Dark” foi, em muitos aspectos, um livro do seu tempo — foi escrito contra o tremendo desespero no auge da administração Bush e no início da guerra no Iraque. Esse momento passou há muito tempo, mas o desespero, o derrotismo, o cinismo, a amnésia e as suposições das quais eles muitas vezes surgem não se dispersaram, mesmo que as coisas mais incontroláveis e inimaginavelmente magníficas tenham acontecido. Há muitas evidências para a defesa da esperança.
Tendo voltado ao texto mais de uma dúzia de tumultuosos anos depois, acredito que suas premissas ainda se sustentam. Grupos progressistas, populares e de base tiveram muitas vitórias. O poder popular continuou a ser uma grande força de mudança. E as mudanças pelas quais passamos, tanto maravilhosas quanto terríveis, são surpreendentes.
Este é um tempo extraordinário, cheio de movimentos vitais e transformadores que não podiam ser previstos. Também é uma época de pesadelo. O engajamento completo requer a capacidade de perceber ambos. O século XXI viu o aumento da hediosa desigualdade econômica, talvez devido à amnésia, tanto dos trabalhadores que aceitaram o declínio de salários, condições de trabalho e serviços sociais, quanto das elites que esqueceram que cederam a algumas dessas coisas na esperança de evitar a revolução. O ataque às liberdades civis, incluindo o direito à privacidade, continua muito depois das justificativas da “guerra global contra o terror” terem desaparecido.
Pior do que isso é a chegada das mudanças climáticas, mais rápidas, mais difíceis e mais devastadoras do que os cientistas esperavam. Esperança não significa negar essas realidades. Significa enfrentá-las e abordá-las lembrando o que mais o século XXI nos trouxe, incluindo os movimentos, heróis (e heroínas) e as mudanças de consciência com a qual abordamos dessas coisas agora. Esta tem sido uma década verdadeiramente notável para a construção de movimentos, mudanças sociais e mudanças profundas nas ideias, perspectivas e estruturas para grande parte da população (e, claro, retrocessos contra todas essas coisas).

É importante dizer o que a esperança não é: não é a crença de que tudo estava, está ou vai ficar bem. As evidências de tremendo sofrimento e destruição estão ao nosso redor. A esperança que me interessa é sobre perspectivas amplas com possibilidades específicas, que convidam ou exigem que ajamos.
Esperança ambém não é uma narrativa ensolarada de “tudo-está-melhorando”, embora possa ser um contraponto ao “tudo-está-ficando pior”. Você poderia chamá-la de um relato de complexidades e incertezas, com aberturas. “Pensamento crítico sem esperança é cinismo, mas esperança sem pensamento crítico é ingenuidade”, comentou recentemente a escritora búlgara Maria Popova. E Patrisse Cullors, uma das fundadoras da Black Lives Matter, descreveu no início a missão do movimento como “fornecer esperança e inspiração para a ação coletiva, para construir o poder coletivo e para alcançar a transformação coletiva, enraizada no luto e na raiva, mas apontada para a visão e os sonhos”. É uma afirmação que reconhece que o luto e a esperança podem coexistir.
As tremendas conquistas dos direitos humanos — não apenas na conquista de direitos, mas na redefinição de raça, gênero, sexualidade, personificação, espiritualidade e a ideia de “qualidade de vida” — do último meio século floresceram em um tempo de destruição ecológica sem precedentes e de surgimento de novos meios inovadores de exploração. E o surgimento de novas formas de resistência, incluindo a resistência possibilitada por uma compreensão elegante dessa ecologia e novas formas de as pessoas se comunicarem e se organizarem, e novas e estimulantes alianças através da distância e da diferença.
A esperança se localiza na premissa de que não sabemos o que vai acontecer e de que na amplitude da incerteza há espaço para agir. Quando você reconhece a incerteza, você reconhece que pode ser capaz de influenciar os resultados — você sozinho ou você em conjunto com algumas dezenas ou vários milhões de outros.
A esperança é um abraço do desconhecido e do incognoscível, uma alternativa para a certeza tanto de otimistas quanto de pessimistas. Os otimistas acham que tudo ficará bem sem o nosso envolvimento; pessimistas adotam a posição oposta; ambos se isentam de agir. É a crença de que o que fazemos importa mesmo que como e quando importem, ou quem e o que podem impactar, sejam coisas que não possamos saber de antemão. Podemos também, de fato, nunca conhecer os impactos depois, mas eles importam mesmo assim e a história está cheia de pessoas cuja influência foi mais poderosa depois que elas se foram.
Há grandes movimentos que não conseguiram alcançar seus objetivos; há também gestos relativamente pequenos que se transformaram em revoluções bem-sucedidas. A autoimolação do vendedor ambulante Mohamed Bouazizi, empobrecido e ameaçado pela polícia, em 17 de dezembro de 2010, na Tunísia, foi a faísca que acendeu uma revolução em seu país e depois em todo o norte da África e outras partes do mundo árabe em 2011. E embora a guerra civil na Síria e as contrarrevoluções após a extraordinária revolta do Egito possam ser o que a maioria se lembra, a “Revolução de Jasmim” da Tunísia derrubou um ditador e resultou em eleições pacíficas naquele país em 2014.
O que quer que tenha sido Primavera Árabe, ela é um exemplo extraordinário de como a mudança é imprevisível e do quão potente o poder popular pode ser. E cinco anos depois, é muito cedo para tirar conclusões sobre o que tudo isso significou. Você pode contar a história da gênese da Primavera Árabe de outras maneiras. A organização silenciosa nas sombras, acontecendo de antemão, importa. Assim como a história em quadrinhos sobre Martin Luther King e a desobediência civil que foi traduzida para o árabe e amplamente distribuída no Egito pouco antes da revolta. Você pode falar sobre as táticas de desobediência civil de King sendo inspiradas pelas táticas de Gandhi, e Gandhi inspirado por Tolstoi e pelos atos radicais de não cooperação e sabotagem das sufragistas britânicas.
Assim se tecem os fios das ideias ao redor do mundo e através das décadas e séculos. Há outro fio que liga a primavera árabe ao hip-hop, estilo musical afro-americano que se tornou um meio global de dissidência e indignação. O artista tunisiano de hip-hop El Général foi, juntamente com Bouazizi, um instigador da revolta, e outros músicos desempenharam papéis na articulação da indignação, inspirando o público.
Depois de uma chuva, cogumelos aparecem na superfície da terra como se do nada. Muitos vêm de um fungo subterrâneo às vezes vasto que permanece invisível e amplamente desconhecido. O que chamamos de cogumelos, os micologistas (especialistas em fungos) chamam de corpo frutífero do fungo maior e menos visível. Revoltas e revoluções são muitas vezes consideradas espontâneas, mas é a organização e as bases menos visíveis a longo prazo — ou o trabalho subterrâneo — que muitas vezes lançaram suas bases. Mudanças nas ideias e valores também resultam de trabalhos realizados por escritores, estudiosos, intelectuais públicos, ativistas sociais e participantes das mídias sociais. Para muitos, parece insignificante ou periférico até que resultados muito diferentes emerjam a partir de suposições transformadas sobre quem e o que importa, quem deve ser ouvido e acreditado, quem tem direitos.
Um desastre é muito parecido com uma revolução: interrupção, improvisação e uma sensação emocionante de que tudo é possível.
Ideias no início consideradas ultrajantes, ridículas ou extremas gradualmente se tornam o que as pessoas pensam que sempre acreditaram. Como a transformação aconteceu raramente é lembrado, em parte porque é comprometedora: lembra o mainstream quando ele próprio era, digamos, raivosamente homofóbico ou racista de uma forma que não é mais; e lembra que o poder vem das sombras e das margens, que nossa esperança está no escuro ao redor das bordas, não nos holofotes do centro do palco. Nossa esperança e muitas vezes nosso poder.

Mudar a narrativa não é suficiente por si só, mas muitas vezes tem sido fundamental para mudanças reais. Tornar uma ferida visível e pública é geralmente o primeiro passo para remediá-la, e a mudança política muitas vezes segue a cultura, já que o que há muito foi tolerado é visto como intolerável, ou o que foi negligenciado se torna óbvio. O que significa que todo conflito é, em parte, uma batalha sobre a história que contamos, ou sobre quem conta e quem é ouvido.
Uma vitória não significa que tudo agora vai ficar bem para sempre e que, portanto, todos nós podemos ir embora e relaxar até o fim dos tempos. Alguns ativistas temem que se reconhecermos a vitória, as pessoas desistirão da luta. Há muito tempo tenho mais medo de que as pessoas desistam e vão para casa ou que nunca comecem a lutar se acharem que nenhuma vitória é possível ou se não reconhecerem as vitórias já alcançadas. A casamento igualitário não é o fim da homofobia, mas é algo para se comemorar. Uma vitória é um marco na estrada, evidência de que às vezes ganhamos e um encorajamento para continuar e não parar. Ou deveria ser.
Minha própria pesquisa sobre os motivos para se ter esperança recebeu dois grandes reforços nos últimos anos. Um deles veio do reconhecimento de quão poderosas são as forças altruístas e idealistas já em ação no mundo. A maioria de nós diria, se perguntado, que vivemos em uma sociedade capitalista, mas grande parte de como vivemos nosso cotidiano — nossas interações e compromissos com a vida familiar, amizades, ocupações, participação em organizações sociais, espirituais e políticas — são, em essência, não capitalistas ou mesmo anticapitalistas, feitos de coisas que fazemos de graça, por amor e por princípio.
De certa forma, o capitalismo é um desastre contínuo que o anticapitalismo alivia, como uma mãe arrumando as bagunças de seu filho. (Ou, para estender a analogia, às vezes disciplinando aquela criança a arrumar ela mesma, através de legislação ou protesto, ou prevenindo algumas das bagunças em primeiro lugar.) E vale a pena acrescentar que as formas não capitalistas de fazer as coisas são muito mais antigas do que os arranjos econômicos de livre mercado. Os ativistas muitas vezes falam como se as soluções de que precisamos ainda não tivessem sido lançadas ou inventadas, como se estivéssemos começando do zero, quando muitas vezes o objetivo real é amplificar o poder e o alcance das opções existentes. O que sonhamos já está presente no mundo.
O segundo reforço veio da minha investigação sobre como os seres humanos respondem a grandes desastres urbanos, desde os terremotos devastadores em São Francisco (em 1906) e na Cidade do México (em 1985) até o bombardeio de Londres na 2ª Guerra Mundial e o furacão Katrina em Nova Orleans. A suposição por trás de muitas das respostas a desastres pelas autoridades — e da lógica de bombardear civis — é que a civilização é uma fachada frágil, e por trás dela está nossa verdadeira natureza monstruosa, egoísta, caótica e violenta, ou então tímida, frágil e indefesa. Na verdade, na maioria dos desastres, a maioria das pessoas são calmas, engenhosas, altruístas e criativas. E campanhas de bombardeio civil geralmente não conseguem quebrar a força de vontade do povo.
O que me assustou sobre a resposta a desastres não foi a virtude, uma vez que a virtude é muitas vezes o resultado de diligência e obediência, mas a alegria apaixonada que brilhou dos relatos de pessoas que mal sobreviveram. Essas pessoas que perderam tudo, que viviam em escombros ou ruínas, encontraram ação, significado, comunidade, imediatismo em seu trabalho junto a outros sobreviventes. Este século de testemunhos sugeriu o quanto queremos vidas com engajamento significativo e adesão à sociedade civil, e quanto esforço social existe para nos manter longe desse “eu” mais completo e poderoso. Mas as pessoas voltam para esse “eu”, para essas formas de se auto-organizar, como se por instinto quando a situação exige isso. Assim, um desastre é muito parecido com uma revolução quando se trata de ruptura e improvisação, criação de novos papéis e uma sensação irritante ou emocionante de que agora tudo é possível.

“A memória produz esperança da mesma forma que a amnésia produz desespero”, observou o teólogo Walter Brueggemann. É uma afirmação extraordinária, que nos lembra que, embora a esperança seja sobre o futuro, os motivos da esperança estão nos registros e lembranças do passado.
Podemos falar de um passado que não passou de derrotas, crueldades e injustiças, ou de um passado que era uma adorável era de ouro agora irremediavelmente perdida, ou podemos contar uma história mais complicada e precisa, que tem espaço para o melhor e o pior, para atrocidades e libertações, para o luto e o júbilo. Uma memória proporcional à complexidade do passado e de todo o elenco de participantes, uma memória que inclui nosso poder, produz aquela energia direcionada para a frente chamada esperança.
A amnésia leva ao desespero de muitas maneiras. O status quo gostaria que você acreditasse que é imutável, inevitável e invulnerável, e a falta de memória de um mundo em mudança dinâmica reforça essa visão. Em outras palavras, quando você não sabe o quanto as coisas mudaram, você não vê que elas estão mudando ou que elas podem mudar. Aqueles que pensam assim não se lembram de ataques a bares gays quando ser homossexual era ilegal, ou rios que pegavam fogo quando a poluição não regulamentada atingiu o pico na década de 1960 ou que havia, em todo o mundo, 70% mais aves marinhas há algumas décadas. Assim, eles não reconhecem as forças da mudança em ação.
Um dos aspectos essenciais da depressão é a sensação de que você sempre estará atolado nessa miséria, que nada pode ou vai mudar. Há um equivalente público à depressão privada, uma sensação de que a nação ou a sociedade, em vez do indivíduo, estão presas.
As coisas nem sempre mudam para melhor, mas elas mudam, e podemos desempenhar um papel nessa mudança se agirmos. E é aqui onde entram a esperança e a memória, a memória coletiva que chamamos de história.
A outra aflição que a amnésia traz é a falta de exemplos de mudanças positivas, do poder popular, evidências de que podemos fazê-lo e temos feito. George Orwell escreveu: “Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado.” Controlar o passado começa por conhecê-lo; as histórias que contamos sobre quem éramos e o que fizemos moldam o que podemos e faremos. O desespero também é muitas vezes prematuro: é uma forma de impaciência, bem como de certeza.
Ciclos de notícias tendem a sugerir que a mudança ou acontece em pequenas e repentinas explosões ou então não ocorre. A luta para pelo voto feminino levou quase três quartos de século. Por um tempo, as pessoas gostavam de anunciar que o feminismo havia falhado, como se o projeto de derrubar milênios de arranjos sociais deveria alcançar suas vitórias finais em algumas décadas, ou como se tivesse parado. O feminismo está apenas começando. Suas manifestações importam nas aldeias rurais do Himalaia, e não apenas nas grandes cidades.

Outras mudanças resultam em vitórias e depois são esquecidas. Durante décadas, os radicais estiveram preocupados com o Timor-Leste, brutalmente ocupado pela Indonésia de 1975 a 2002: agora o país livre não é mais notícia. Ganhou sua liberdade por causa da luta valente que veio de dentro, mas também por causa de grupos dedicados do lado de fora que pressionaram e envergonharam os governos que apoiavam o regime indonésio. Poderíamos aprender muito com a notável demonstração de poder e solidariedade e com a eventual vitória do Timor-Leste, mas toda a luta parece esquecida.
Precisamos de litanias, recitações ou monumentos para essas vitórias, para que sejam marcos na mente de todos. De forma mais ampla, mudanças, digamos, no status das mulheres são facilmente esquecidas por pessoas que não se lembram de que, algumas décadas atrás, os direitos reprodutivos ainda não eram um conceito e não havia recurso para exclusão, discriminação, assédio sexual no local de trabalho, para a maioria das formas de estupro e outros crimes contra as mulheres que o sistema legal não reconhecia ou mesmo vislumbrava. Nenhuma das mudanças era inevitável — as pessoas lutaram por elas e as ganharam.

A mudança social, cultural ou política não funciona de forma previsível ou em momentos previsíveis. Um mês antes da queda do Muro de Berlim, quase ninguém previu que o bloco soviético se desintegraria de repente (graças a muitos fatores, incluindo o tremendo poder da sociedade civil, a ação direta não violenta e a organização esperançosa desde a década de 1970); ninguém, nem mesmo os participantes, previu o impacto que a Primavera Árabe ou que o Ocupy Wall Street ou uma série de outras grandes revoltas teriam.
Não sabemos o que vai acontecer, ou como, ou quando, e essa incerteza é o espaço da esperança.
Aqueles que duvidam que esses momentos importam devem notar o quão aterrorizadas as autoridades e as elites ficam quando eles explodem. Esse medo significa seu reconhecimento de que o poder popular é real o suficiente para derrubar regimes e reescrever o contrato social. E muitas vezes tem. Às vezes seus inimigos sabem aquilo que mesmo seus amigos não acreditam. Aqueles que descartam esses momentos por causa de suas imperfeições, limitações ou incompletudes precisam olhar mais para a alegria e a esperança que brilham neles e quais mudanças reais surgiram por causa deles, mesmo que nem sempre das formas mais óbvias ou reconhecíveis.
A mudança raramente é simples. Às vezes é tão complexa quanto a Teoria do Caos e tão lenta quanto a Evolução. Mesmo coisas que parecem acontecer de repente surgem de raízes profundas no passado ou de sementes longamente adormecidas. O suicídio de um jovem desencadeia uma revolta que inspira outras revoltas, mas o incidente foi uma faísca; a fogueira que acendeu foi colocada por redes ativistas e por ideias sobre a desobediência civil, e pelo profundo desejo por justiça e liberdade que existe em todos os lugares.
É importante perguntar não só o que esses momentos produziram a longo prazo, mas o que eles eram em seu auge. Se as pessoas se encontram vivendo em um mundo em que algumas esperanças são realizadas, algumas alegrias são incandescentes e algumas fronteiras entre indivíduos e grupos são reduzidas, mesmo por uma hora ou um dia ou vários meses, isso importa. A memória da alegria e da libertação pode se tornar uma ferramenta de navegação, uma identidade, um dom.
Paul Goodman escreveu: “Suponha que você teve a revolução da qual está falando e sonhando. Suponha que seu lado tenha ganhado, e você tenha o tipo de sociedade que você queria. Como você viveria, você pessoalmente, nessa sociedade? Comece a viver assim agora!” É um argumento para vitórias minúsculas e temporárias, e para a possibilidade de vitórias parciais na ausência ou mesmo na impossibilidade de vitórias totais.
A vitória total sempre pareceu um equivalente laico do paraíso: um lugar onde todos os problemas estão resolvidos e não há nada para fazer, um lugar bastante chato. Os absolutistas da velha esquerda imaginavam que a vitória seria, quando viesse, total e permanente, o que é praticamente o mesmo que dizer que a vitória era e é impossível e que nunca virá.
É, de fato, mais do que possível. É algo que chegou de inúmeras maneiras, pequenas e grandes e muitas vezes incrementais, mas não dessa forma que foi amplamente descrita e esperada. Assim, as vitórias passam despercebidas. Falhas são mais facilmente detectadas.

E de vez em quando, as possibilidades explodem. Nesses momentos de ruptura, as pessoas encontram-se membros de um “nós” que até então não existia, pelo menos não como uma entidade com agência, identidade e potência; novas possibilidades surgem de repente, ou esse velho sonho de uma sociedade justa ressurge e — pelo menos por um tempo — brilha. Utopia às vezes é o objetivo. Muitas vezes está embutido no próprio momento, e é um momento difícil de explicar, uma vez que geralmente envolve modos difíceis de viver, disputas e, eventualmente, desilusão e partidarismo. Mas envolve também coisas mais etéreas: a descoberta do poder pessoal e coletivo, a realização de sonhos, o nascimento de sonhos maiores, um senso de conexão tão emocional quanto político, e vidas que mudam e não retornam mais para formas antigas mesmo quando a glória diminui.
Às vezes, a terra se fecha sobre este momento e não deixa consequências óbvias; às vezes impérios desmoronam e ideologias caem como algemas. Mas você não sabe de antemão. As pessoas nas instituições oficiais acreditam devotamente que detêm o poder que importa, embora o poder que lhes concedemos possa muitas vezes ser retirado; a violência comandada por governos e militares muitas vezes falha, e campanhas de ação direta não violentas muitas vezes têm sucesso.
O gigante adormecido é um nome para o público. Quando ele acorda, quando acordamos, não somos mais apenas o público: somos a sociedade civil, a superpotência cujos meios não violentos são às vezes, por um momento brilhante, mais poderosos que a violência, mais poderosos que regimes e exércitos. Escrevemos história com os pés, com nossa presença e nossa voz coletiva e visão. E ainda assim, é claro, tudo na grande mídia sugere que a resistência popular é ridícula, inútil ou criminosa, a menos que esteja longe, que tenha acontecido há muito tempo, ou, idealmente, ambos. Estas são as forças que preferem que o gigante continue dormindo.
Juntos somos muito poderosos, e temos uma história raramente contada e lembrada de vitórias e transformações que pode nos dar confiança de que, sim, podemos mudar o mundo porque já mudamos muitas vezes antes.
Você rema para frente olhando para trás, e contar essa história é parte de ajudar as pessoas a navegar em direção ao futuro. Precisamos de uma litania, um rosário, um sutra, um mantra, um canto de guerra de nossas vitórias. O passado é definido à luz do dia, e pode se tornar uma tocha que podemos levar para a noite que é o futuro.

REBECCA SOLNIT é escritora, historiadora e ativista. É autora de Os homens explicam tudo para mim, A mãe de todas as perguntas e De quem é esta história (os dois últimos lançados pela Companhia das Letras), além de mais de quinze livros sobre feminismo, história indígena e ocidental, poder popular, mudança social e insurreição, entre outros temas contemporâneos. Nascida e criada na Califórnia, é colunista do jornal The Guardian e colaboradora do portal Literary Hub.
O fio das ideias (a rede que me levou à tradução desse texto):
>> Foi um artigo de Maria Popova, criadora do site Brain Pickings, que me levou até o livro de Rebecca Solnit. Brain Pickings site é repleto de reflexões e dicas inspiradoras. Se virar leitor/a, não deixe de contribuir com o trabalho da autora, divulgando ou doando:
https://www.brainpickings.org/donate/
>> Como o livro Hope in the Dark ainda não foi lançado no Brasil, comprei uma versão em e-book por apenas U$5 diretamente no site da Haymarket Books. A Haymarket Books é uma editora de livros radical, independente e sem fins lucrativos com sede em Chicago, um projeto do Center for Economic Research and Social Change.
https://www.haymarketbooks.org/
>> Por fim, só tive acesso a este artigo que traduzi porque, ao contrário de muitos outros jornais, o The Guardian continua aberto para todos os leitores, independentemente de onde eles vivem ou do que eles podem pagar. Eles têm realizado uma cobertura constante e robusta da emergência climática e aceitam doações para manter seu jornalismo de qualidade.
Beth Ponte é gestora cultural, pesquisadora e consultora. É autora do projeto Qualidade para a Cultura, membro do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Organizações Sociais da Cultura (ABRAOSC) e do Observatório de Economia Criativa da Bahia (OBEC-BA).
www.qualityforculture.org/pt >> info@qualityforculture.org